Rumo a um Novo Oriente Médio

No dia 22 de setembro deste ano, portanto 15 dias antes dos ataques do Hamas a Israel, o primeiro-ministro deste país compareceu à Assembleia Geral da ONU, onde apresentou sua visão para um “Novo Oriente Médio” (foto abaixo). No discurso, o líder sionista exaltou a paz firmada há três anos com Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão, assim como a possibilidade – e proximidade – de um acordo com a Arábia Saudita. Nos mapas apresentados, representando Israel em 1948 e no presente, não havia menção à Palestina, deixando clara a forma que tomará, segundo o projeto sionista, o “Novo Oriente Médio”. 


O fato de não haver menção ao Estado Palestino no mapa poderia indicar que o governo israelense almeja a solução “um Estado para dois povos”, transformando os palestinos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental em cidadãos israelenses. Isto no entanto descaracterizaria o caráter judeu do Estado sionista, que teria de se transformar num Estado laico, em que origem nacional e religião não seriam condicionantes para a participação política – o que vai além do que o mais ingênuo dos otimistas poderia imaginar. Um Estado para dois povos, no caso da atual liderança israelense, poderia significar apenas um Estado baseado numa forma extrema de apartheid, com os palestinos vivendo em guetos cercados por muros e outros aparatos de segurança (o que na prática já ocorre há algumas décadas).
Há no entanto uma outra opção, do ponto de vista do atual governo de Israel: a constituição de “um Estado para um povo”, com a aceleração da limpeza étnica que vem sendo conduzida desde o próprio nascimento do Estado sionista, na chamada Primeira Guerra Árabe-Israelense (1947-1949), em que 531 vilas e oito bairros urbanos foram despovoadas pelas forças coloniais sionistas, dando origem à primeira leva de refugiados palestinos (o que é relatado em detalhes pelo historiador israelense Ilan Pappe, no livro A limpeza étnica da Palestina). O processo repetiu-se posteriormente na Guerra dos Seis Dias, em 1967, em que Israel ocupou a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e a Faixa de Gaza – esta desocupada em 2005, mas desde então mantida como uma prisão pelo Estado sionista, que controla suas fronteiras terrestres, marítimas e aéreas, além do acesso a água e energia (enquanto grande parte da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental vem sendo despovoada para ocupação pelos colonos sionistas). E é justamente na Faixa de Gaza onde se localizam muitos desses refugiados das guerras anteriores promovidas por Israel, agora forçados ao deslocamento pela segunda ou terceira vez.
A simples observação da imensa destruição e mortandade provocadas por Israel na Faixa de Gaza (por canais como a Al Jazeera, que mostram o que os órgãos de imprensa ocidentais omitem) permite supor que a opção “um Estado para um povo” foi a escolhida pelo governo sionista, que agora vem promovendo, à vista do mundo, o despovoamento da Faixa de Gaza (ou pelo menos de sua metade norte), expulsando os palestinos para o Egito ou Jordânia. 
Com o ataque do Hamas contra Israel, o Estado colonialista de Israel já tem o 11 de setembro para chamar de seu (nesse sentido seria interessante a imprensa israelense investigar por que o governo ignorou os alertas egípcios de que algo grande estava para ocorrer). O primeiro-ministro sionista, antes criticado e mesmo acusado de corrupção, formou um governo de coalizão com os adversários políticos de maneira a enfrentar a guerra, ganhou carta-branca para usar a força contra a Palestina, e receberá algumas dezenas de bilhões de dólares dos Estados Unidos, sendo grande parte em armamentos modernos, além da presença de dois porta-aviões e suas frotas de maneira a dissuadir Irã ou Rússia de intervirem no conflito. E com a invasão terrestre que se inicia, já avisou que a guerra será longa, de maneira a poder configurar o Oriente Médio à sua maneira – isto é, sem o Estado da Palestina.

Uma surpresa muito esperada

O ataque do Hamas a Israel, com o assassinato e rapto de seus cidadãos, surpreendeu por sua violência e pelo número de mortos e capturados entre os israelenses. Há de se recordar que nos quinze anos anteriores (desde que o Hamas assumiu o controle interno da Faixa de Gaza, por sua vez mantida sob estrito bloqueio terrestre, aéreo e naval israelense, com a conivência egípcia), os conflitos na Faixa de Gaza e adjacências haviam deixado 308 israelenses mortos, sendo a maioria militares, enquanto em um único dia o Hamas provocou a morte de mais de 1.000 colonos sionistas (o número ainda não é precisamente informado). Por outro lado, devemos lembrar que no período citado acima houve a morte de 6.407 palestinos e outros 152.560 ficaram feridos – números que guardam a razão de 21 palestinos mortos para cada israelense, o que vem sendo uma constante no conflito desde o final dos anos 1960 (e que prenuncia uma matança a ser realizada em Gaza como vingança israelense).
O que não surpreendeu foi a nova onda de violência, pois há décadas os palestinos (a maior parte dos quais refugiados de guerras anteriores contra Israel) vivem em condições sub-humanas na Faixa de Gaza, e reivindicam as terras que lhes foram tomadas pelos sionistas para a criação de seu estado independente. O fundamental a se considerar em qualquer análise deste conflito é que a Guerra da Palestina é na verdade uma guerra de independência contra uma ocupação colonial ilegal (segundo a ONU), como ocorreu em tantos países da África e da Ásia a partir dos anos 1950, quando soçobraram os impérios coloniais, sobretudo da Grã-Bretanha e França. A particularidade, devida ao fato de o movimento sionista ser simultaneamente colonialista e nacionalista (o que é uma contradição), é que a “metrópole” colonial encontra-se transplantada para a colônia. 
Ainda como motivador do ataque do Hamas, deve-se considerar que nos últimos meses o governo liderado pelo primeiro-ministro israelense vem endurecendo a repressão contra os palestinos na Faixa de Gaza, em Jerusalém e na Cisjordânia, limitando ainda mais seu movimento, promovendo novas ocupações do território palestino, e insistindo na política de assassinato e aprisionamento de palestinos – apenas neste ano de 2023 mais de 200 civis palestinos já haviam sido mortos pelo exército israelense na Faixa de Gaza.
Se muitos foram tomados de surpresa pelo ataque, isto se deve ao duplo padrão da mídia tradicional, que ignora a morte cotidiana de palestinos, mas não a de israelenses. E considera o Hamas terrorista, mas ignora que a estratégia (condenável) usada neste ataque – o assassinato e o sequestro de civis, levados para o outro país – é exatamente aquela que vem sendo usada pelo governo israelense há muitas décadas (os números mais recentes indicam quase 5.000 palestinos presos em Israel, sendo mais de 500 cumprindo prisão perpétua, e incluindo 40 mulheres e 200 crianças). O governo israelense vem promovendo terrorismo de Estado há décadas, e a reação dos palestinos não pode ser considerada uma surpresa, mas uma reação esperada de quem é expulso de sua terra e permanece para sempre como um não-cidadão, submetido a condições desumanas de sobrevivência. 

A triste sina do Egito


Mais uma vez o Egito foi tomado por uma mobilização popular visando mudanças políticas. Dessa vez, a vítima foi o presidente eleito Mohammed Morsi, que apenas iniciava seu segundo ano no poder. Os opositores do presidente e da Irmandade Muçulmana, apoiados diretamente pelo Exército egípcio e discretamente pelas potências ocidentais, conseguiram em poucos dias derrubar o governo, instalando um regime provisório que irá “reconduzir o país à normalidade”. Isso, no entanto, será bem mais difícil do que parece – e parece muito complicado.
Um assentamento político está longe de ser alcançado. Com a derrubada do governo legitimamente eleito, a tendência será a radicalização dos adeptos da Irmandade Muçulmana, que há um ano foram os vitoriosos das eleições. A simples transmissão do poder para o campo não islâmico não é garantia de solução dos conflitos, num país fortemente dividido e com grande diversidade cultural e religiosa. Assim, é bem possível que o Exército permaneça exercendo o poder, de maneira a evitar o esfacelamento do Estado como o que ocorreu no Iraque e vem ocorrendo na Síria. Isto poderia ser feito inclusive com a manutenção de um presidente civil “fantoche”, como parece ser o atual presidente interino, deixando o Exército livre para seu papel de repressor da dissensão.
A difícil situação política, no entanto, não é o pior dos males no Egito. A questão de fundo que motivou os protestos assenta-se nos problemas sociais do país, decorrentes de uma grande deterioração da economia egípcia nas últimas décadas. O Egito, historicamente um grande produtor de cereais (não por outro motivo foi anexado ao Império Romano na época dos amores de Cleópatra), deixou de ser autossuficiente desde a década de 1960, e hoje importa cerca de 75% do trigo que consome. Para fechar essa conta, o país passou a confiar cada vez mais na crescente exportação de petróleo, que no entanto atingiu seu pico em 1996 e desde então vem declinando. A isso se juntou o aumento do preço do petróleo após as Guerras Estadunidenses iniciadas em 2001, que teve o efeito deletério de provocar forte aumento do preço dos cereais e dos alimentos de modo geral (pelos motivos analisados no artigo “Entendendo a crise dos alimentos”).  
O presidente deposto estava seguindo o receituário do FMI para o ajuste de contas destinado a diminuir o endividamento do país, que hoje se encontra em cerca de 80% do PIB. Diminuíram-se os subsídios à energia, e o país passou a enfrentar apagões. Caíram também as importações de alimentos, que atingiram no mercado interno um preço inacessível para os 40% da população que vivem abaixo da linha da pobreza. O desemprego é alto, e a população, de 84 milhões de habitantes, cresce em ritmo de país subdesenvolvido.
Um novo governo, civil ou militar, recebendo as bênçãos do Grande Irmão americano, pouco poderá fazer para fugir ao receituário neoliberal que aumenta o intervalo entre ricos e pobres, e esse parece ser o grande problema a ser vencido pelos sucessores do infeliz Morsi – que apesar de todos seus erros, foi o primeiro presidente democraticamente eleito nesse país de 5000 anos de história, que até então só conhecera faraós, sultões, reis e generais, além dos conquistadores estrangeiros. E que tem a triste sina de pertencer à África e ao Oriente Médio.

A Palestina tem o direito de se defender


Em uma semana, já são mais de 130 os palestinos mortos, sendo 27 crianças e 11 pessoas de uma mesma família; em Israel, os mortos chegam a 5. Quem está se defendendo de quem?

Quem lê ou ouve as notícias que desde o dia 14 relatam a explosão de violência na Faixa de Gaza pode ficar um pouco confuso. O principal mote, “Israel tem o direito de se defender”, é repetido acriticamente por todos os meios de comunicação. Para o presidente estadunidense, “nenhum país na Terra toleraria mísseis chovendo sobre seus cidadãos”, enquanto o ministro do exterior britânico afirma que o Hamas tem a “principal responsabilidade” pela violência. Enquanto isso, a mídia repete a ladainha de que Israel apenas está respondendo a ataques feitos pelo Hamas.
Não é bem assim.
Se examinarmos com mais cuidado os eventos ocorridos nos últimos meses, vemos que Israel teve um papel predominante na atual escalada de violência. Desde outubro diversos incidentes vêm ocorrendo – embora a mídia ocidental não os divulgue, pois a morte a conta-gotas e diária de dezenas de palestinos não chama tanto a atenção como a morte de três israelenses num ataque com morteiros. Apenas nos últimos dias de outubro e na primeira quinzena de novembro (antes, porém, do reinício dos ataques palestinos contra Israel), pode-se relatar:
• o assassinato de 15 militantes palestinos em ataque aéreo no final de outubro;
• o assassinato de um garoto de 13 anos numa incursão israelense no início de novembro;
• o assassinato extrajudicial do líder Ahmed Jabari, durante um cessar-fogo em 14 de novembro (o próprio Jabari era um dos principais negociadores palestinos de um acordo com Israel).
A questão central, no entanto, é a permanência da ocupação, que parece não ser vista como uma violência pela mídia e pelos governantes ocidentais. De fato, desde o início de 2012 (até o dia 13/11), foram mortos 78 palestinos pelas forças israelenses - no mesmo período, 1 israelense perdeu a vida devido a ataques palestinos. Além disso, em nenhum momento foram interrompidas as construções de novas colônias judaicas em território palestino, em flagrante desrespeito aos acordos anteriormente assinados por Israel.  
Ao que tudo indica, a recente escalada de violência foi uma ação deliberada do primeiro-ministro israelense, tendo em mente alguns objetivos:
• alcançar unidade nacional diante de um “terrível inimigo externo”;
• o desejo de testar a determinação do novo presidente egípcio, Muhammad Morsi;
• a chance de destruir a infraestrutura balística do Hamas e de testar seu próprio escudo antimísseis.
Israel é a vítima?
Retratar Israel como a vítima de ataques externos é uma clamorosa inversão da realidade. Há 45 anos Israel vem ocupando ilegalmente as terras palestinas, e é conhecido e respeitado o direito de todo o povo de se defender de ocupações estrangeiras – ninguém em sã consciência apoiaria a ocupação nazista da França ou a ocupação japonesa da China. E certamente se fôssemos invadidos pela Argentina, nos sentiríamos no direito de reagir.
Embora Israel tenha se retirado da Faixa de Gaza em 2005, a ocupação continua (como reconhece a ONU). Israel controla as fronteiras terrestres e marinhas, as águas territoriais e os recursos naturais, o espaço aéreo, o fornecimento de energia e as telecomunicações. A região está bloqueada desde 2007, quando o Hamas tomou o poder, obstaculizando o movimento de pessoas e suprimentos para a Faixa de Gaza. Além disso, o restante da Palestina (a Cisjordânia) continua sob ocupação israelense, e a via não violenta para a solução do conflito, adotada pelo Fatah (que controla esta região) não vem trazendo qualquer resultado positivo para os palestinos.
A verdade é simples e objetiva: Israel é o agressor; os palestinos têm o direito de se defender e lutar por sua autodeterminação. 

Gaza: velhos padrões de comportamento


Parece que já vimos este filme. Passadas as eleições estadunidenses, e a menos de dois meses das eleições em Israel, este país desencadeia uma nova ofensiva contra a Faixa de Gaza, respondendo a foguetes lançados pelos radicais palestinos contra o Estado judaico – pelo menos é o que atesta a grande mídia ocidental, pois para a imprensa independente os foguetes palestinos são uma reação à ocupação israelense da Palestina. Depois de centenas de mortos entre os palestinos, e uma ou duas dezenas entre os israelenses, tudo volta ao normal, com a Faixa de Gaza novamente destruída, a liderança palestina morta, e uma nova “geração perdida” destinada a substituir os pais na luta contra o poder colonialista. Foi assim em 2008/2009, com a operação que deixou 1400 palestinos e 13 israelenses mortos. Nos três dias dessa nova onda de ataques, já são 38 palestinos e 3 israelenses mortos, e para que a conta feche ainda faltam morrer algumas centenas de palestinos. 
É praticamente impossível, e agora inútil, saber quem quebrou a frágil trégua que havia se estabelecido desde 2009, embora em outros momentos já se tenha evidenciado a predisposição do governo israelense em romper os acordos acertados de maneira a gerar nova onda de violência e retaliações. A proximidade das eleições em Israel não deixou de ser notada pela maioria dos analistas como catalisadora dessa nova onda de violência. Observa-se na manobra do primeiro-ministro israelense a intenção de criar uma onda de unidade nacional que o garanta no poder. Assim como em outros momentos da história, a presença de um inimigo externo reforça a coesão interna no país “agredido” – e assim como em outros momentos da história, esse inimigo externo precisou ser criado por regimes militaristas interessados em sua perpetuação.
A receita para trazer novamente o inimigo à presença do cidadão israelense já é bem conhecida do governo sionista: o assassinato extrajudicial de algum líder palestino, provocando a imediata e inevitável reação na forma de foguetes disparados contra Israel. E aí entra o detalhe perverso, que indica a falta de disposição do governo israelense em resolver a questão pela via pacífica: o líder palestino assassinado em 14 de novembro, Ahmed Jabari, vinha conduzindo negociações para estabelecer um cessar-fogo permanente entre Israel e a Faixa de Gaza (conforme relato do negociador israelense Gershon Baskin). 
Para um Estado que se fundamenta no poder militar e na imposição de uma “muralha de ferro” ao redor de si, moderados não têm vez. Servem mais ao governo israelense a intransigência, o discurso inflamado, os foguetes sendo disparados contra seu território e – por que não ? – uns dois ou três mortos entre seu próprio povo. 

Aprendendo com a Líbia

Com a divulgação de um filme de incitação religiosa anti-islâmica (veja abaixo), protestos foram convocados em algumas partes do mundo islâmico. Em Benghazi, na Líbia, a manifestação popular foi acompanhada pela ação armada de uma milícia extremista, Ansar al-Sharia, um dos muitos grupos armados que controlam pequenos feudos na Líbia pós-Kadafi, e deixou como mortos quatro funcionários da representação, incluindo o embaixador dos Estados Unidos, Christopher Stevens.
Mais uma vez evidencia-se como é difícil implantar um estado de direito nos países onde era apenas a força dos governos autocráticos que mantinha a unidade nacional. Estes governos, outrora armados pelas próprias potências ocidentais, a um determinado momento deixaram de ser-lhes úteis, passando então as potências a armar a oposição e a fomentar a derrubada dos ditadores. Derrubar os governos, porém, é a parte mais fácil do problema. O difícil é saber o que oferecer no lugar.
Dividida em tribos que controlam seu espaço com as armas adquiridas no curso da revolução (fornecidas pelas potências ocidentais e pelos países árabes), a Líbia une-se assim ao Iraque e ao Afeganistão como um país sem lei (o Egito reluta em seguir este caminho). Há muitos fazendo esforço enorme para que o mesmo aconteça na Síria, onde apenas uma saída negociada poderia encaminhar o país para uma democracia secular e um período de recuperação e crescimento. 


Receita de ódio religioso

O filme que detonou os protestos contra as representações estadunidenses no Egito e na Líbia foi elaborado por um homem que se denomina israelense-estadunidense, e cujo nome não citarei neste artigo. A produção amadora e de má qualidade, recebida com indiferença em Los Angeles, é completamente insultuosa aos muçulmanos, retratando o profeta Muhammad de maneira completamente ridícula e ofensiva. Foi financiada por 100 doadores judeus não identificados, que doaram ao diretor US 5 milhões para produzir o filme, cujo objetivo é demonstrar que “o Islã é um câncer”. Embora o filme tenha duas horas (que aparentemente poucos tiveram a paciência de assistir), foram os 13 minutos do trailer postado no Youtube que detonaram uma nova onda de protestos islâmicos contra os Estados Unidos. A mesma vigilância que proíbe filmes da jihad islâmica ou dos supremacistas raciais, no entanto, não foi capaz de proibir um filme que é evidentemente uma incitação ao ódio religioso, e que certamente irá provocar ainda maiores protestos à medida que seja replicado em todo o mundo islâmico. 

De volta à Idade Média

Na época medieval eventos climáticos desfavoráveis provocavam ondas de fome  e revoltas. Já nos tempos contemporâneos...


Aprendemos que na Idade Média (período que se estendeu, aproximadamente, entre os anos 500 e 1500 de nossa era), a produção de alimentos mal bastava para a suficiência humana. Não havia depósitos de cereais, pois do pouco que se produzia, grande parte tinha que ser novamente empregada no plantio, sendo o restante rapidamente devorado. Não havia frigoríficos, trens, ou navios a vapor, e apenas os alimentos produzidos localmente eram consumidos – à exceção do sal e das famosas especiarias (cravo, canela, noz-moscada, pimenta etc.), que, ao contrário do que se pensa, não eram usadas para conservar a carne, mas para disfarçar o sabor da carne mal conservada. A oferta e a demanda eram assim extremamente ajustadas – com ligeira vantagem para a demanda, o que era um elemento limitador do crescimento populacional. Como a produtividade era muito baixa, pequenas variações climáticas ou infestações de pragas provocavam grandes estragos, enquanto crises mais prolongadas na agricultura tinham os resultados mais diversos – tais como a Peste Negra dos anos 1348-1350, ou a Revolução Francesa em 1789 (esta já na Idade Moderna).
Com a chegada e a difusão do capitalismo e da ciência moderna – nos ensinaram – tudo mudou. A produtividade agrícola aumentou substancialmente, possibilitando o crescimento das cidades e a criação de reservas cerealíferas. Novos meios de transporte, como galeões e caravelas (no século XVI), navios a vapor e ferrovias (no século XIX), aviões e veículos automotores (no século XX) aumentaram a oferta de produtos originários de outros países ou continentes. O frigorífico e a embalagem a vácuo criaram novas possibilidades de conservação e transporte dos alimentos. As crises agrícolas, especialmente as devidas a fatores climáticos, eram portanto coisas do passado.
Entre o que aprendemos e a realidade do mundo contemporâneo há uma larga distância. Em abril 2008 – portanto algumas semanas antes do estouro da crise econômica – escrevi um artigo intitulado Entendendo a crise dos alimentos, que ainda permanece bem atual. Neste eu argumentava que o mundo enfrentava uma crise na produção de carboidratos devido a fatores conjunturais (aumento do preço do petróleo devido às guerras dos EUA no Oriente Médio; crise na oferta de trigo na Argentina; crise na produção de arroz no sudeste asiático) e estruturais (aumento da demanda mundial; subsídios agrícolas nos países ricos; destinação de cereais à produção de biocombustíveis nos EUA).
Quanto aos fatores estruturais, como era de se esperar, mantêm-se bastante vivos. A cada ano um contingente maior de pessoas entra no mercado de consumo, sobretudo pelo crescimento populacional e econômico dos países do antigo “Terceiro Mundo”. A produção de alimentos em diversas partes do mundo – sobretudo na África – permanece desestimulada pela impossibilidade de se competir com os preços subsidiados dos produtores europeus e estadunidenses. A má distribuição de renda acentua-se tanto nos países ricos como nos pobres, gerando em consequência o desperdício entre uns e a carência entre outros.
Quanto aos fatores conjunturais que afetavam a produção de alimentos em 2008, foram em grande parte resolvidos, embora se possa prever que a superação da atual crise econômica faça o preço do petróleo retornar seu viés de alta, encarecendo toda a cadeia produtiva alimentar. No ano de 2012, porém, enfrentamos uma crise muito mais grave – a monstruosa seca que vem assolando mais de 60% do território dos Estados Unidos, afetando gravemente a produção de grãos no país e provocando um aumento mundial no preço dessas commodities – especialmente soja, milho e trigo, importantes não apenas na alimentação humana mas também como ração animal, impactando também o preço da proteína.
Considerando-se a possibilidade de superação da crise econômica iniciada em 2008 nos EUA e realimentada em 2011-2012 na Europa, o preço do petróleo irá aumentar, encarecendo a cadeia produtiva alimentar desde o fertilizante até o motoqueiro do disk-pizza (sem falar que uma ou duas guerras ainda podem estourar no Oriente Médio). Isto, conjugado à histórica seca nos EUA, que pode se estender e deixar sequelas por mais alguns anos, provocará um aumento substancial no preço dos alimentos, que passarão a ser vendidos apenas aos clientes e países mais abonados. Entre os pobres dos países pobres, o preço dos carboidratos irá se tornar proibitivo (o das proteínas já o é), e novas manifestações começarão a espocar aqui e ali em consequência de más decisões políticas somadas a condições climáticas extremas.
Será que estamos voltando à Idade Média?



A Síria de mal a pior

Os últimos dias presenciaram importantes desdobramentos na crise síria, e hoje a queda do ditador Bashar al-Asad parece mais possível do que poderíamos supor alguns dias atrás. Vejamos:

Defecções: A brutalidade com que Bashar al-Asad e seu círculo vêm lidando com a oposição levou alguns importantes membros do governo e militares a renunciar a cargos, abandonar o partido ou a deserdar das forças armadas. Na última semana destacou-se o caso do embaixador sírio no Iraque, Nawaf Fares, que anunciou em 12 de julho que renunciava ao cargo, passando à oposição revolucionária. Além deste, muitos outros ex-aliados de alta patente também estão renunciando e denunciando o regime – estima-se que cerca de vinte generais sírios tenham buscado refúgio na Turquia, e começam a se relatar as primeiras deserções de soldados.   

Combates em Damasco: No domingo 15 de julho os combates chegaram a Damasco. Embora o governo afirme tratar-se apenas da “infiltração de grupos terroristas”, o poderio do material bélico empregado na capital foi o semelhante ao usado em outras cidades do país, como Hama, Rastan, Deraa e Houla – onde 116 pessoas, incluindo dezenas de crianças, foram massacradas no final de maio. O exército vem usando artilharia, tanques e helicópteros nos bairros de onde partiram os ataques do “Exército da Síria Livre” contra os postos do regime, provocando grande destruição e causando dezenas de mortes.  

Diplomacia: no plano diplomático, está ficando cada vez mais difícil para a Rússia e a China continuarem a vetar resoluções do Conselho de Segurança da ONU que autorizem o uso da força contra o regime de Assad. Em 9 de julho, o governo russo anunciou que estava suspendendo a entrega de aviões que já haviam sido prometidos a Damasco, e encerrando qualquer negociação sobre novos suprimentos de armas. Tal iniciativa procura desarmar (com o perdão do trocadilho) o discurso dos que consideram que o interesse do Kremlin na manutenção do regime de Assad está ligado apenas à venda de equipamentos bélicos russos aos sírios. Revela-se entretanto o verdadeiro interesse russo em vetar a intervenção na Síria: não se trata de garantir a venda de armas, mas de enfraquecer a tese da intervenção para a derrubada de “governos ilegítimos” ou para a “proteção dos direitos humanos”, o que poderia respingar no eterno conflito da Rússia com as nacionalidades que lhes são submetidas.

Atentado: A explosão que ontem (18 de julho) matou quatro importantes membros do regime de Bashar Al-Assad pode significar uma importante mudança nos rumos do conflito. Entre os mortos encontra-se o todo-poderoso General Assef Shawkat, (cunhado de Assad e, junto com este e seu irmão Maher, um dos três mais importantes nomes do aparato militar), além dos ministros da defesa e do interior, e de um importante assistente presidencial, que se encontravam reunidos para discutir as medidas de repressão à revolução em curso. O regime foi atingido em seu núcleo, evidenciando-se que a oposição é muito mais forte do que podia prever Assad, e já consegue atuar no interior do próprio aparato de segurança do ditador.
Perspectivas: Infelizmente para a Síria e para os sírios, mesmo a perspectiva de remoção de Assad não é positiva para o país. A oposição ao regime não é unificada, e ainda há uma importante parcela da população e dos militares que apoia o presidente. Além disso, o país sofre uma importante pressão causada por atores externos (tais como o Irã e Israel), encontrando-se ainda no centro da “Guerra Fria” que as atitude de Putin vêm fazendo ressurgir. É possível imaginar a formação de um “governo de união nacional” que encerre imediatamente os conflitos e inicie um processo de democratização que assegure o caráter laico do Estado, mas também é possível imaginar que as empresas capitalistas abrirão mão de seus lucros em favor das populações pobres e miseráveis do mundo. É mais razoável, entretanto, prever a “iraquização” do país, como aconteceu no país vizinho, que após ser devastado pelos Estados Unidos e ter seu malvado ditador derrubado e sacrificado, jamais encontrou a paz, vivendo em estado de constante conflito sectário e civil. Tristes tempos para os árabes.

Guerra Fria, 11 de setembro e o fim do sonho americano

ROTEIRO CINEMATOGRÁFICO EM 10 CENAS CURTAS


1) Primeira Guerra Mundial: grande aumento da produção industrial estadunidense, especialmente de armas;
2) Fim da Primeira Guerra: reconversão da indústria bélica à civil;
3) Anos 1920: aumento da produção industrial e agrícola estadunidense;
4) Anos 1929-1933: Grande Depressão (uma crise gerada pela superprodução);
5) Segunda Guerra mundial: idem a (1)
6) Fim da II GM: receio de se reconverter a indústria bélica para não repetir (3) e (4). Necessidade de se manter os gastos militares, porém o Nazismo foi derrotado. Ideia genial: cria-se um novo inimigo, a terrível URSS que ameaça "conquistar o mundo" para o comunismo. Cinema e meios de comunicação colaboram para população estadunidense apoiar altos gastos militares. Os demais países ocidentais são forçados a entrar na órbita militar dos EUA em busca de "proteção".
7) Fim da Guerra Fria e Governo Clinton: decréscimo substancial dos gastos militares do governo, para grande insatisfação do Complexo Industrial Militar.
8) Setembro de 2000: Institute for a New American Century publica documento que trata da necessidade de um evento "semelhante a Pearl Harbor" para os EUA voltarem a exercer hegemonia mundial (e especialmente sobre a região central da Eurásia, onde se encontram as grandes reservas energéticas do Golfo Pérsico, Irã-Iraque e Mar Cáspio);
9) 11 Setembro de 2001: "América é atacada". A última vez tinha sido em 1941, quando os japoneses atacaram Pearl Harbor, levando os EUA a entrarem na Segunda Guerra Mundial. Logo: uma nova guerra teria de ser declarada. Ideia genial: cria-se um novo inimigo: o satânico vilão malvado perverso e feio que por coincidência vive bem em cima das reservas citadas em (8): o muçulmano.
10) De setembro de 2001 a setembro de 2011: com a "Guerra ao Terror", os gastos militares dos EUA crescem exponencialmente, atingindo valores estratosféricos e comprometendo qualquer esforço de responsabilidade fiscal do governo. Somados aos estímulos posteriores à crise de 2008, fizeram a dívida pública aumentar de 5 a 14 trilhões de dólares e a receita federal passar de superavitária a deficitária, ao que se uniu o endividamento excessivo das famílias e empresas. É o fim do "sonho americano".

FIM